Por que escrevo?

Por que escrevo?

Alexandre Faria

(Texto publicado originalmente no Blog da editora Texto Território, em 18/10/2019)


Escrevo porque a ilusão precisa de desilusão. Há que se discernir, em meio à canalha, quando a chantagem se vende como lealdade. Escrevo porque sempre houve, há, haverá, corpos torturados em porões, em presídios, em tesourarias, em escolas, hospitais, templos, em famílias e em mentes imaginativas que aceitam, como realidade, o que está dado. Escrevo porque a realidade é fruto da mais absoluta imaginação. E os cães engravatados vão continuar apostando nas torturas para defender seu mundo.

E porque os santos e santas se emputecem e os putos e putas se beatificam a cada segundo em cada canto do mundo. Escrevo porque nazistas queimam livros, porque inquisidores queimam mulheres, porque filhos de juízes brancos queimam índios, porque juízes brancos queimam negros, porque médicos brancos queimam pobres, porque queimaria meu estômago o silêncio e o espanto ante as palavras com que o noticiário, religiosamente, dá o massacre de marias da penha, galdinos, dandaras, marilelles, ágathas. 

Escrevo porque o pincel de Courbet abriu o mundo como uma boceta (que Lacan guardou em cofre). Escrevo porque diariamente, como uma ave-maria, a artilharia abre fogo contra Lorca. Escrevo porque a dança de Nureyev rasga cortinas. Escrevo porque a escrita rasga a mortalha quando cai o pano. Escrevo porque a bala que tomou a vida de Maiakovski revolta as águas agitadas da história e inquieta os fluidos de todo artista. Escrevo como quem veste uma camisa amarela e sai por aí. 

Escrevo porque ritmos imploram virar palavra. Porque é a palavra e nada, além de gozo e dor aguda. Escrevo porque a mesma palavra que estabelece fronteiras e demarca territórios, ultrapassa-as e invade-os. Escrevo porque são infinitas as possibilidades combinatórias. E com esse infinito me esbaldo no caos medíocre dos que tentam se consolar de que "é a vida", de que "é assim mesmo", de que "nada há a fazer". Escrevo porque escrever é fazer.

Escrevo porque que dou a mão, abraço, beijo, trepo quando escrevo. E porque escrevo aposto no encontro com quem não compartilha a contrição dos que mendigam perdoar, nem o cinismo dos que contabilizam gestos de ternura. Escrevo porque não há paraíso, nem inferno, nem um mundo melhor. Nem cura nem loucura. O mundo é esse, o das palavras que se dão à vida. Escrevo para dar outras palavras à vida. Pelas adversativas do adverso. Contra as concessões e as condicionantes. Escrevo. Ponto. Nada além, porque tudo. Escrevo porque o desencanto precisa de encanto.

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