Sem respeito, de Byung-Chul Han

O texto a seguir é o primeiro capítulo do livro No enxame, de Byung-Chul Han (Vozes, 2018).


Minha sugestão é apenas trocar-lhe o título:


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Uma explicação teórica para a atual realidade política



Respeito significa literalmente olhar para trás [Zurückblicken]. Ele é um olhar de volta [Rücksicht]. No trato respeitoso com os outros, controlamos o nosso observar [Hinsehen] curioso. O respeito pressupõe um olhar distanciado, um pathos da distância. Hoje, ele dá lugar a um ver sem distância, caraterístico do espetáculo. O verbo latino spectare, ao qual espetáculo remonta, é um olhar voyeurístico, ao qual falta a consideração distanciada, o respeito (respectare). A distância distingue o respectare do spectare. Uma sociedade sem respeito, sem o pathos da distância, leva à sociedade do escândalo. 

O respeito é o alicerce da esfera pública. Onde ele desaparece, ela desmorona. A decadência da esfera pública e a crescente ausência de respeito se condicionam reciprocamente. A esfera pública pressupõe, entre outras coisas, um não olhar para a vida privada. A tomada de distância é constitutiva para o espaço público. Hoje, em contrapartida, domina uma falta total de distância, na qual a intimidade é exposta publicamente e o privado se torna público. Sem afastamento [Ab-Stand] não é possível também nenhum bom comportamento [An-Stand]. Também o entendimento [Ver-Stand] pressupõe um olhar distanciado. A comunicação digital desconstrói a distância de modo generalizado. A desconstrução da distância espacial acompanha a erosão da distância mental. A medialidade [Medialitiit] do digital é nociva ao respeito. É justamente a técnica do isolamento e da separação, como em Adyton, que gera a veneração e a admiração. 

A falta de distância leva a que o privado e o público se misturem. A comunicação digital fornece essa exposição pornográfica da intimidade e da esfera privada. Também as redes sociais se mostram como espaços de exposição do privado. A mídia digital como tal privatiza a comunicação, ao deslocar a produção de informação do público para o privado. Roland Barthes define a esfera privada como "aquela esfera de espaço, de tempo onde eu não sou uma imagem, um objeto". Visto desse modo, não teríamos mais hoje qualquer esfera privada, pois não há, agora, nenhuma esfera em que eu não seria uma imagem, em que não haveria nenhuma câmera. O Google Glass transforma os olhos humanos, eles mesmos, em uma câmera. Os olhos mesmos fazem imagens. Assim, nenhuma esfera privada é mais possível. A imperiosa coação icónico-pornográfica a desfaz inteiramente. 

O respeito está ligado aos nomes. Anonimidade e respeito se excluem mutuamente. A comunicação anônima que é fornecida pela mídia digital desconstrói enormemente o respeito. Ela é corresponsável pela cultura de indiscrição e de falta de respeito [que está] em disseminação. Também o Shitstorm é anônimo. [Shitstorm, traduzido tipicamente como "tempestade de indignação", mas que mais literalmente significaria "tempestade de merda", é o termo usado para descrever campanhas difamatórias de grandes proporções na internet contra pessoas ou empresas, feitas devido à indignação generalizada com alguma atitude, declaração ou outra forma de ação tomada por parte delas. Originalmente, o termo em inglês é apenas um disfemismo vulgar para uma situação extremamente desagradável ou caótica] É nisso que consiste a sua violência. Nome e respeito estão ligados um ao outro. O nome é a base para o reconhecimento, que sempre ocorre de modo nominal [namentlich]. Também estão ligadas à nominalidade [Namentlichkeit] práticas como a responsabilidade, a confiança ou a promessa. Pode-se definir a confiança como uma crença nos nomes. A responsabilidade e a promessa também são um ato nominal. A mídia digital, que separa a mensagem do mensageiro, o recado do remetente, aniquila o nome.  

O Shitstorm tem causas múltiplas. Ele é possível em uma cultura de falta de respeito e de indiscrição. Ele é, antes de tudo, um genuíno fenômeno da comunicação digital. Assim, ele se distingue fundamentalmente das cartas de leitores, que estão ligadas às mídias escritas analógicas e que ocorrem de modo expressamente nominal. Cartas de leitores anônimas acabam rapidamente no cesto de lixo de redações de jornal. Uma outra temporalidade caracteriza a carta de leitor. Enquanto se a redige esforçadamente a mão ou com a máquina de escrever, a exaltação imediata já desvaneceu. A comunicação digital, em contrapartida, torna uma descarga de afetos instantânea possível. Já por conta de sua temporalidade ela transporta mais afetos do que a comunicação analógica. A mídia digital é, desse ponto de vista, uma mídia de afetos. 

A conexão digital favorece a comunicação simétrica. Hoje em dia, aqueles que tomam parte na comunicação não consomem simplesmente a informação passivamente, mas sim a geram eles mesmos ativamente. Nenhuma hierarquia clara separa o remetente do destinatário. Todos são simultaneamente remetentes e destinatários, consumidores e produtores. Tal simetria, porém, é prejudicial ao poder. A comunicação do poder caminha em uma direção, a saber, de cima para baixo. O refluxo comunicativo destrói a ordem do poder. O Shitstorm é um tipo de refluxo, com todos os seus efeitos destrutivos. 

O Shitstorm aponta para deslocamentos econômicos e de poder [machtokonomisch] na comunicação política. Ele se infla no espaço que é fracamente ocupado pelo poder e pela autoridade. Já em hierarquias planas lançamo-nos no Shitstorm. O poder como mídia de comunicação cuida para que a comunicação flua em um sentido. A seleção do curso de ação feita pelos detentores do poder é seguida, por assim dizer, sem ruídos pelos subalternos do poder. O ruído ou o barulho é um indício acústico do começo da desintegração do poder. Também o Shitstorm é um barulho comunicativo. O carisma, enquanto expressão aural do poder, seria o melhor escudo de proteção contra Shitstorms. Ele não se deixa inflar desde o princípio. 

O presente do poder reduz a improbabilidade da aceitação de minha seleção do curso de ação, de minha decisão de vontade por parte de outros. O poder como meio de comunicação consiste em, tendo em vista a possibilidade do Não, aumentar a probabilidade do Sim. O Não é sempre alto. A comunicação de poder reduz consideravelmente o ruído e o barulho, ou seja, a entropia comunicativa. Assim, a palavra de poder elimina repentinamente o barulho que se infla. Ele produz um silêncio, a saber, o espaço para ações. 

O respeito como meio de comunicação exerce um efeito semelhante ao do poder. A perspectiva ou a seleção do curso de ação da pessoa de respeito é tomada e incorporada frequentemente sem contradição e discordância. A pessoa de respeito é até mesmo imitada como um exemplo. A imitação corresponde à obediência adiantada no caso do poder. Justamente lá, onde o respeito desvanece, surge o Shitstorm ruidoso. O respeito se forma por meio da atribuição de valores pessoais e morais. A desintegração generalizada de valores faz com que a cultura do respeito eroda. Os exemplos [de pessoa] atuais são livres de valores interiores. São qualidades exteriores antes de tudo que os caracterizam. O poder é uma relação assimétrica. Ele fundamenta uma relação hierárquica. 

O poder de comunicação não é dialógico. Diferentemente do poder, o respeito não é necessariamente uma relação assimétrica. Sente-se, de fato, frequentemente respeito por pessoas exemplares ou por superiores, mas o respeito recíproco, que se baseia em uma relação simétrica de reconhecimento, é fundamentalmente possível. Assim, mesmo um detentor de poder pode ter respeito por um subalterno do poder. O Shitstorm atualmente em expansão por todos os lugares aponta para o fato de que vivemos em uma sociedade sem respeito recíproco. O respeito exige distância. Tanto o poder como o respeito são meios de comunicação produtores de distância e distanciadores. 

Em vista do Shitstorm, será preciso também redefinir a soberania. É soberano, segundo Carl Schmitt, quem decide sobre o estado de exceção. Pode-se traduzir essa proposição da soberania para o acústico. Soberano é quem consegue produzir um silêncio absoluto, eliminar todo barulho, trazer todos ao silêncio de um golpe só. Schmitt não pôde ter nenhuma experiência da conexão digital. Ela certamente o teria feito cair em uma crise total. É conhecido que Schmitt teve medo de ondas por toda sua vida. Shitstorms também são um tipo de onda que escapa a todo controle. Pelo medo de ondas, Schmitt também teria removido de sua casa o rádio e a televisão. Ele se viu até mesmo levado, em vista das ondas eletromagnéticas, a reformular a sua famosa proposição da soberania: "Depois da Primeira Guerra Mundial, eu disse: 'É soberano quem decide sobre o estado de exceção: Depois da Segunda Guerra Mundial, [estando] diante da minha morte, digo agora: 'É soberano quem dispõe das ondas do espaço"'. Depois da revolução digital, precisaremos reformular novamente a proposição de Schmitt: É soberano quem dispõe do Shitstorm da rede.

(HAN, Byung-Chu. No enxame. Petrópolis: Vozes, 2018. pp. 11- 20)

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