A poesia em cena

Publicado originalmente em Aguarrás, vol. 2, n. 7. ISSN 1980-7767. Rio de Janeiro, MAI/JUN 2007.

Errática – a poesia em movimento é um projeto em que poetas e artistas recitam, cantam, interpretam, criam performances, ou simplesmente conversam com o público, tendo a poesia sempre como motivo principal. O espectador poderá achar as apresentações irregulares, com momentos de fato especiais e outros nem tanto. Mas o que se pretende, aqui, não é propriamente uma resenha crítica do projeto, ainda em andamento, e sim uma reflexão motivada pela sua principal virtude: Errática convida o público a pensar sobre os limites possíveis (ou impossíveis?) que há entre a linguagem poética e outros domínios da expressão artística, como o teatro, a música, as artes plásticas, ou o vídeo. Corre-se sempre o risco de tocar neste assunto e simplificar certas questões teóricas. Mas arriscarei no espaço desta coluna uma experiência de ensaio e erro, a fim de trazer alguns pontos de vista sobre a poesia e suas encenações.

O projeto Errática lança mão de tantos recursos quantos são os poetas convidados. Houve a sobreposição de vozes gravadas e recitadas em palco, na performance de Ricardo Aleixo; o poema canto-falado acompanhado pela base eletrônica do DJ Dodô e pelo teremin de Lica Cecato; a (in)formalidade de Armando Freitas Filho que se dispôs a conversar com o público sobre sua carreira e em seguida apertar o play de um antigo gravador portátil, com uma fita cassete em que o poeta gravara seus poemas; o improviso estudado de Michel Melamed e Adriana Calcanhotto, ao escolher livros de uma pilha e ler poemas alheios; a exibição de vídeos sobrepostos à figura tímida de Eucanaã Ferraz, que passeava no palco e lia versos próprios, enfim, miríade de variantes cênicas e de suportes técnicos para apresentar para o público a velha e boa poesia. 

 A questão que se coloca inicialmente é: em que medida pode haver um contato entre os recursos de que o projeto Errática lança mão e os tradicionais saraus poéticos, ou mesmo as performances arrojadas que desde os anos 60/70 vêm encontrando bastante receptividade do público? Contemporaneamente os recitais ou performances poéticas reeditam a tradição dos saraus da Belle Époque carioca? É certo que a pompa ou a dicção elitista daquela poesia fica muito longe do despojamento verbal da poesia que freqüenta os saraus de hoje, mas o que aproxima estas duas épocas é a oralidade como meio de comunicação/elaboração poética. Neste caso, seria até possível remontar à origem oral da poesia, junto à lira do aedo. No entanto não é preciso ir tão longe. 

 Um breve retrospecto da tradição oral da poesia brasileira, feito pelo poeta Mano Melo (“A força dos recitais” In: 100 anos de poesia – um panorama da poesia brasileira no séc XX), indica os anos 60 como o momento de retomada, na cena cultural brasileira, dos recitais poéticos, que se tinham tornado mais escassos entre as décadas de 20 e 50. É sintomático que a revalorização da oralidade tenha acontecido naqueles anos rebeldes. Além da consciência de povo (e, conseqüentemente, do analfabetismo) que orientava o projeto cepecista, a década é a do início da explosão da TV, que se afirmará como principal meio de comunicação, ao longo dos anos 70/80. Isso representou, também, considerável mudança na natureza do verso modernista. 

Os anos 50 contextualizam o auge da poesia modernista brasileira, tanto com poetas que a traziam desde o momento inaugural, como Drummond, Murilo Mendes, ou Jorge de Lima, quanto de Cabral e de outros, mais novos ainda, como Mário Faustino, os irmãos Campos, ou o primeiro Gullar. Após essa elaboração madura e erudita, a que foi submetida, a poesia reencontra o coloquialismo e a oralidade. E o projeto de formar um público leitor no Brasil começa a enfrentar a injusta concorrência do áudio-visual. Desde então, a experiência de comunicação oral da poesia passou pelo agito dos anos 70, pela performance pop dos 80, e encontra ecos até hoje, em atuações de poetas como Elisa Lucinda, e de grupos como o Ver o verso, o Cep 20000, ou o Poesia simplesmente, que já há vários anos organiza o Festival Carioca de Poesia. 

Tais movimentos indicam uma mudança de dicção e de roupagem que a poesia modernista experimentou na cultura brasileira, na qual o poeta, que recorria ao livro como principal suporte para sua criação, ombreia com a figura do porra-louca da praia de Ipanema, a compartilhar versos e baganas. Dos anos 70 a este início do século XXI, o que houve foi considerável retração da porra-louquice e alguma oficialização dessa nova forma de atividade poética, através da ocupação regular dos espaços públicos. Errática, portanto, chega ao CCBB representando, em alguma medida, a canonização da oralidade como alternativa poética. Pode ser um caso isolado, mas é sintomático: na fila de uma das apresentações, um espectador me confessou: “gosto mais de ouvir do que de ler poesia”. O que a permanência dos recitais deixaria claro, e Errática viria apenas confirmar, é certa vocação para o áudio-visual do “leitor” de poesia? 

Mas esta não é a única questão. Não deixa de ser instigante refletir também sobre as transformações que tal processo passa a exigir dos poetas, no exercício de sua arte. O poema para ser lido em silêncio nem sempre funciona na exposição oral. Por exemplo, o texto que Ricardo Aleixo apresenta em palco, com recursos cênicos, efeitos sonoros e repetições, não é o mesmo poema que está na página de seu livro. Resta, em função disso, enfrentar a difícil questão sobre o quanto a encenação pode ou não mascarar o rigor da linguagem poética. A transposição da poesia para o palco depende mais do elemento performático, que vai desde a atuação do leitor até os recursos técnicos e cênicos, e menos da consistência verbal do poema propriamente dito. Mas se o apresentador não atenta para esse detalhe ou erra no cálculo da inflexão, a apatia da platéia leva a constatar que o veículo oral não foi suficientemente elaborado para aquele discurso poético. Por outro lado é evidente (embora não seja regra geral) que muitos poemas, que comovem, deleitam e ensinam no palco, não resistem à leitura silenciosa. 

As apresentações de Errática, então, têm o valor adicional de revelar a dessimetria entre o poeta dos livros e o dos palcos. Adriana Calcanhotto e Eucanaã Ferraz, por exemplo: ela ia conversando, sacando livros, lendo poemas, cantando em provençal e encantando; ele, sem habilidade de palco, com um verso hábil entre folhas sulfite nas mãos, não foi capaz de atingir o público. Armando Freitas Filho, por sua vez, soube reconhecer a distância entre a sua competência performática e a de Ricardo Aleixo, e conseguiu angariar a simpatia do público e dar o seu recado, embora, quando se tratou de recitar o poema, o gravadorzinho de mão comprovou a distância entre seu verso e a percepção auditiva. As apresentações de Michel Melamed e Lica Cecato revelaram a mesma distinção entre o suporte de papel e a poesia multimídia. Arnaldo Antunes, por sua vez, desde Psia, demonstra que a página do livro não é suficiente para seu poema. A programação reserva, ainda, Antonio Cicero e Lenora de Barros (22/05) e Jorge Mautner e André Vallias (05/06). 

 Enfim, Errática comprova que o limite entre o bom poema e o espetáculo que tem a poesia como atriz principal é (para se homenagear a canção de Caetano Veloso que nomeia o projeto) pausa de fração de semifusa. E os poetas, ou cantores, ou atores, ou apresentadores, enfim, os que estiverem contracenando com essa diva devem pensar nisso.

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