Um rei sem boca da noite
Todos tem sua hora na boca da noite. Exceto alguns reis.
Outro dia assisti à Vida de Pi. Achei uma espécie de upgrade do Mágico de Oz (coisas do pai da Clarice). Mas,
na inevitável hora de revelar suas metáforas, o filme dói; e cresce. Passar um
dia sem carne, uma vida, vá lá. Não é nada, se compararmos ao momento em que um
vegetariano se vê obrigado a comer carne. A da própria mãe, do próprio irmão?
Ninguém é digno de ouvir uma palavra e ser salvo. Mas advogados e juízes estão
aí pra isso mesmo.
É a hora em que, sem advogados nem juízes (não
necessariamente sem deuses, mas sem juízes), sentimo-nos justiçados diante da existência.
Compreendemos. Fica rica a polissemia da palavra sujeito. Diariamente a
gangorra entre ser agente da própria vida e saber-se subjugado ao não saber,
não prever. Quando disse que alguns reis são incapazes de experimentar sua hora
na boca da noite, pensei naqueles que vivem – e governam – à mercê dos
oráculos, como o de La vida es sueño. Naqueles que, pelo sonho, governam
destinos (e como é próximo de Calderón de la Barca o Inception, de Christopher Nolan). Naqueles que, sóis
absolutos, tornaram-se reis cantando e encantando a simplicidade humilde de sua
gente. Ou naqueles que, como vegetais, reinam em estado de coma e mantém a vida
através de tubos (agradeço a imagem a Edson Leão Ferenzini) e máquinas, advogados
e juízes, padres e papas e toda a corja da tecnoburocracia. Ah, esses sujeitos
públicos que não querem ser objetos!
Tudo isso me veio à tona depois que soube que Roberto
Carlos, através de seus advogados, mais uma vez, está perseguindo livros. A
vítima da vez é "Jovem Guarda: Moda, Música e Juventude", de Maíra
Zimmermann, resultante de uma pesquisa de mestrado em moda, cultura e arte no
Centro Universitário Senac e publicado com apoio da Fapesp. Há detalhes do
assunto no google. Mas não esperem ver nem uma notinha na rede de tubos e
máquinas que mantém o rei vivo. Por isso é bom que se divulgue a notícia.
Quando aconteceu, em 2006, o caso Paulo Cesar Araújo, fique furioso, protestei,
escrevi laudas e laudas.
Por hora, mais não digo.