Motor e motivo da poesia de Oswaldo Martins

Publicado originalmente em Aguarrás, vol. 3, n. 16. ISSN 1980-7767. Rio de Janeiro, NOV/DEZ 2008.

Cosmologia do Impreciso (Rio de Janeiro, 7Letras, 2008) é o quarto livro do poeta Oswaldo Martins e e, sem sombra de dúvidas, o mais maduro. Nele, o autor consolida uma poética que se fundamenta no profundo diálogo com as criações artísticas tradição ocidental, e que se desdobra na crítica radical do que, nessa mesma tradição, é interdito, é reflexo hipócrita dos condicionamentos morais. Essa trajetória vem conscientemente sendo percorrida desde seu primeiro livro, desestudos (2000), e se desdobra nos seguintes, minimalhas do alheio (2002), e lucidez do oco (2004), todos pela editora 7Letras.

O intenso jogo dialógico aparece, em todos os títulos, como motor da poesia de Oswaldo Martins. É um desafio para o leitor desfiar os intertextos que cada poema instaura, não só com a literatura, mas também com a pintura, o cinema, a música, e toda forma de arte. Para exemplificar amplitude intertextual dessa poesia, basta mencionar alguns de seus poemas, como o “i modi” (em minimalhas do alheio), em que estão presentes os sonetos luxuriosos de Aretino em diálogo com as famosas gravuras de Giulio Romano e com as do Conde de Waldeck (http://www.textoterritorio.pro.br/imodi); ou o “di-glauberiana” (em lucidez do oco), em que se fundem o cinema de Glauber Rocha e a pintura de Di Cavalcanti, numa homenagem à fita em que o cineasta documenta o enterro do pintor, filme que foi cassado na justiça brasileira pela família de Di e que só recentemente passou a ser disponibilizado em domínios estrangeiros, através da internet (http://www.tempoglauber.com.br/glauber/Filmografia/di.htm); já no último livro são presenças marcantes Diderot em “estudos para pinturas sacras”, ao lado dos sambistas Cartola e Nelson Cavaquinho, estudados em “cartolografia” e “cavaquinhos”, respectivamente. Como se vê o jogo de referências construídos na poesia de Oswaldo Martins evita hierarquizar o erudito ou o popular, o nacional ou o estrangeiro. E, de Modigliani ao Afrorreggae, de Man Ray ao Mallarmé mulato, essas escolhas deixam, em última análise, o poeta num lugar ideologicamente privilegiado e intelectualmente livre.

A liberdade é fundamental, justamente para o que aparece como motivo da poesia de Oswaldo Martins, a celebração. E a crítica de tudo o que depuser contra a vocação humana de celebrar. Os exemplares vendidos no lançamento de cosmologia do impreciso fizeram-se acompanhar de um CD com os poemas do livro gravados por amigos do poeta; o próprio lançamento não ocorreu numa sisuda livraria, mas num bar da Lapa, famosa região boêmia do centro do Rio. As homenagens tanto nos temas dos poemas quanto nas dedicatórias e nos demais eventos em torno do livro são indícios da celebração. Por outro lado, o poeta não abre mão da reflexão sobre o fazer poético. Muitas leituras do CD deixam pistas dos desacertos do leitor diante de tão rigorosa forma. Ao lado da celebração da poesia e da vida, o poeta dispõe a cerebração do poema e do verso, num intenso e sofisticado trabalho cujo objetivo é o desmonte crítico dos condicionamentos morais que também moldam a cultura ocidental. Desde o título de seu terceiro livro, Lucidez do oco, a aporia que cinde o humano em corpo e espírito (seja o santo ou o das luzes), vem sendo explícita e programaticamente combatida em nome liberdade e da afirmação irrefutável da vida. Agora, Cosmologia do impreciso consagra e define a cosmovisão da poesia de Oswaldo Martins. A vida e a liberdade (como condição inevitável do homem, para lembrarmos Sartre), são reafirmadas através do erótico, em sua fortuitidade mais (ex-/im-)pulsiva, numa metáfora igualmente intensa: a buceta, sintomaticamente grafada com u, ratificando o gesto transgressor, a sedição da poesia. Leia-se o título 3 da “antimetafísica das apreciações”:

quando quadros e livros
bucetas são

não são bucetas que se levam
aos livros e quadros

senão que quadros e livros
buscam

o que de buceta
são (Cosmologia do impreciso, p. 93)

A imagem, que tanto por metonímia, numa menção evidente ao corpo, quanto por metáfora, numa substituição das obras da cultura, aqui representadas pelos livros e quadros, redunda na experiência do erotismo como pulsão para o outro, compartilhamento de corpos e de sentidos, e funda um jogo complexo em que as idéias de nascer e gozar, entrar e sair, circulam, do livro para a vida, da vida para o livro, levando à constatação de que é entre os corpos que a vida se consuma, e que a utopia da poesia, da arte, enfim, é menos alimentar o espírito que promover trocas humanas no interior desse impreciso cosmo, como vem descrito no poema imediatamente posterior:

os botequins
os mistérios
o cachimbo de baudelaire

esta mangueira de cavaquinhos ritmos
no cosmo como o cosmo é:

uma dobradura-porta
aberta para o absurdo (p. 94)

Nesse sentido, o jogo dialógico e intertextual, aquilo que se apresentou como motor, não deixa de se irmanar ao motivo, a celebração das trocas e experiências humanas. Um está para o outro e formam essa “dobradura-porta”, imagem que se revela, simultaneamente, trompe-d'oeil e passagem de fato. Os incautos e escandalizados com o texto equivocadamente tachado de pornográfico, ficam no primeiro, perdem-se na dobradura, e não desfrutam o prazer do texto, como queria Barthes. Mas os que são capazes de ainda demonstrar mínima sensibilidade à humana condição, esse entram no cosmo impreciso e celebram algum encontro.

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