Três meninas do Brasil
Publicado originalmente em Aguarrás, vol. 3, n. 11. ISSN 1980-7767. Rio de Janeiro, JAN/FEV 2008.
Espero rever, em 2008, numa temporada mais longa, o show Três Meninas do Brasil, o delicioso encontro entre as cantoras Jussara Silveira, Rita Ribeiro e Teresa Cristina, que no fim do ano passado rendeu apenas duas apresentações no Rio e outras duas em Brasília. Numa época em que os encontros da MPB, são cada vez menos marcantes e mais comerciais (vendem CD e DVD, mas acrescentam pouco à percepção do público, às carreiras dos artistas, ou às canções do repertório), esse show merece destaque, pois recupera e agrupa canções que levam a repensar a tradicional relação entre música popular e identidade cultural no Brasil. Esse tema, que me parece longe de estar bem resolvido em muitas de nossas produções culturais mais recentes, merece ser refletido à luz do que as três meninas cantaram, sob direção musical de Jaime Alem e artística de Jean Wyllys.
A música de Moraes Moreira e Fausto Nilo, que abre e dá título ao show, é o ponto de partida para a reflexão. A canção "Meninas do Brasil" (1980), desde o seu título não deixa de, com algum gracejo, fazer contraponto ao romance Meninos do Brasil (1976), de Ira Levin, que virou filme em 1979. O livro alude ficcionalmente ao médico nazista Josef Mengele, que, após o fim da Guerra, teria se escondido entre os trópicos para dar continuidade a suas experiências genéticas e produzir os tais meninos bem de acordo com os princípios da eugenia nazista. A canção, sem deixar de recorrer aos clichês do nacionalismo, faz o contraponto político tanto com a inversão do gênero, meninos viram meninas ("mulher brasileira em primeiro lugar", já cantava Benito di Paula), quanto com a insistência na folclórica na democracia racial:
Três meninas do Brasil, três corações democratas
Têm moderna arquitetura ou simpatia mulata
Como cinco fosse um trio, como um traço um fino fio
No espaço seresteiro da elétrica cultura
Deus me faça brasileiro, criador e criatura
Um documento da raça pela graça da mistura
Do meu corpo em movimento, as três graças do Brasil
Têm a cor da formosura
Essa concepção de identidade orienta o show e se explicita já no cenário: ao fundo três flores amorosas, obviamente remetendo à delicadeza das meninas, e sobre o palco um mosaico de pétalas de crepom que desenham a bandeira do Brasil, cujas cores vão se misturando na medida as cantoras dançam e passeiam sobre ela, enquanto alternam belíssimos trios, duetos e solos. Mas a idéia se manifesta principalmente no repertório que, de referenciais múltiplos, vai do bolero ao forró, passando pelo samba e pela "tecnomacumba"; de "Ludo Real" de Chico Buarque e Vinícius Cantuária a “Impossível acreditar que perdi você”, de Márcio Greyck, passando por "Isso aqui tá bom demais", de Dominguinhos, “Poxa”, de Gilson de Souza, ou “Minha tribo sou eu”, de Zeca Baleiro. Enfim, procurando abarcar várias faces da música brasileira, o show quer ser macunaímico, ou seja, produzir unidade a partir da diversidade.
É sobre essa concepção de identidade, talvez no que ela possa ter de ingênua ou inatual, que se deve repensar a música brasileira. Nos dias de hoje, em que os discursos identitários estão mais intolerantes do que nunca (e às vezes neonazistas) e pretendem ou realçar a diferença, ou simplesmente tirar algum lucro da condição marginal ou periférica, uma proposta como a das três meninas é Pharmakon, veneno e remédio, que devemos provar.
Depois de ouvir Caetano Veloso, em canção recente ("O herói", Cê, 2006), explicitar as contradições da heroicização do discurso rancoroso (o que mereceria reflexão em outro texto), ou assistir à “turma do deixa disso" promovendo duetos entre sambistas e rappers, há que se chamar atenção para um dos pontos mais altos do show Três meninas do Brasil. Refiro-me ao momento em que Tereza Cristina recupera, também de Caetano Veloso, "Nu com minha música". Segue-se um trecho:
Vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor
Vertigem visionária que não carece de seguidor
Nu com a minha música, afora isso somente amor
Vislumbro certas coisas de onde estou
Há nessa escolha responsabilidade e compromisso, indicação de que o cantor, ao trazer na voz a flor amorosa das três raças (nem tão tristes quanto queria Bilac), ou ao gravar na superfície das mídias releituras de nossa aquarela, não pode prescindir dessa difícil lição: vislumbrar certas coisas que não estão necessariamente nem centro nem na periferia, nem na casa grande nem na favela, nem no condomínio fechado nem na senzala, mas que são fundamentais para se produzir algum entendimento do Brasil, e para as quais vai se tornando coragem grande poder dizer sim, como quer a canção.
E já que estamos em Caetano, termino com mais um de seus versos: em 2008, o show Três meninas do Brasil é “para lançar depois do carnaval”.