Anátema, um jogo vital
Publicado originalmente em Aguarrás, vol. 2, n. 6. ISSN 1980-7767. Rio de Janeiro, MAR/ABR 2007.
Anátema é o monólogo de uma serial-killer. No palco, Juliana Galdino doa com precisão voz seca e face fria à assassina. O texto inquietante de Roberto Alvim perscruta no outro (vítima e público se confundem) vestígios do humano, que tanto mais o é quanto mais se indaga. Espécie rara de humanos, nos tempos de hoje, estes que buscam incansavelmente um não sei bem o que de si, do outro.
O texto e a atuação, igualmente raros, são quase auto-suficientes, mas não invalidam a exigência de recursos cênicos, que lhe estejam à altura. As sete velas acesas às vítimas são óbvias demais e a projeção estática das faces mortas fica muito aquém da dinâmica que o texto exige. Diferente é a sonoplastia; os efeitos sonoros, especialmente, a gravação de trechos do “Cântico dos cânticos” lido em aramaico e hebraico, emolduram o monólogo, e consegue produzir denso contraponto ao drama encenado.
A peça também inaugura o Club Noir, “companhia dedicada à montagem de dramaturgia contemporânea, em espetáculos que dialoguem provocativamente com a atualidade”. Mais do que simplesmente ir ao teatro e fruir uma obra rara, vale aceitar a provocação. A julgar por Anátema, a estratégia da nova companhia é forçar o deslocamento dos sentidos do homem contemporâneo: da superfície das relações, consumistas, intermediadas no nível das mercadorias, para o porão quase sempre obscuro e temerário da busca de.
Há um duplo efeito na busca de (assim mesmo, sem complemento). O primeiro é a assunção plena da falta, da ausência, que o consumo só hipocritamente poderia suprir, e o segundo é a imediata projeção do humano para fora da esfera das mercadorias. Explico-me: se busco incessantemente porque (e o que) não há, acabo por reconhecer esta ausência como parte da minha identidade e sei que ela nunca será preenchida seja por um carro novo, um prêmio de um milhão, ou um crime, desses que os noticiários ou Hollywood vendem barato.
Sim, para aceitar a provocação de Anátema, há que se admitir que o homem contemporâneo anda comprando barato o crime e a violência, como se fossem bens de consumo fácil e descartável, mais do mesmo. É sempre mais do mesmo o que garante os grandes índices de vendagem. Há que se ter o crime nosso de cada dia para que tudo se venda, do livro (de auto-ajuda, quase sempre, mas também de sociologia ou de reportagem sobre o crime, a favela, etc etc) ao ansiolítico.
Se é assim, por que Anátema, a história de uma serial-killer, leva à crítica, ao deslocamento dos sentidos, e não ao consumo? Ora, a peça escrita e dirigida por Roberto Alvim não é uma história de serial-killer, mas é a história de uma serial-killer. Naquelas, a série é imprescindível, nesta não há série. Naquelas a profusão de assassinatos urde o jogo maniqueísta em que a astúcia e a habilidade do criminoso são proporcionais à cegueira e inépcia dos agentes da lei. Nesta não há a narrativa da série, mas a reflexão densa a partir da experiência do assassinato como um gesto de amor, de piedade, de entrega e libertação no encontro/confronto com o outro, como a recusa final ao mais do mesmo. Naquelas se garantem as duas horas e pouco de um longa-metragem, ou da dose cotidiana de medo para os que vivem nas grandes cidades. Nesta não há a longa extensão, pelo contrário, o corte é rápido e preciso, para que o expectador saia com mais perguntas, do que com respostas, como quem ouve o eco de uma língua ininteligível. Naquelas, jogos mortais; nesta, um jogo vital.
“Seriam os serial-killers os heróis da cultura do nosso tempo?” Esta é outra pergunta provocadora feita pela companhia Club Noir. Respondê-la demandaria reflexão mais longa. Concluímos apenas com uma hipótese: se os serial-killers forem heróis, em Anátema flagra-se em ação um anti-herói, aquele que não corresponde aos anseios e expectativas de uma comunidade, mas que dilacera e expõe a fragilidade dos valores que a sustentam.
Anátema é o monólogo de uma serial-killer. No palco, Juliana Galdino doa com precisão voz seca e face fria à assassina. O texto inquietante de Roberto Alvim perscruta no outro (vítima e público se confundem) vestígios do humano, que tanto mais o é quanto mais se indaga. Espécie rara de humanos, nos tempos de hoje, estes que buscam incansavelmente um não sei bem o que de si, do outro.
O texto e a atuação, igualmente raros, são quase auto-suficientes, mas não invalidam a exigência de recursos cênicos, que lhe estejam à altura. As sete velas acesas às vítimas são óbvias demais e a projeção estática das faces mortas fica muito aquém da dinâmica que o texto exige. Diferente é a sonoplastia; os efeitos sonoros, especialmente, a gravação de trechos do “Cântico dos cânticos” lido em aramaico e hebraico, emolduram o monólogo, e consegue produzir denso contraponto ao drama encenado.
A peça também inaugura o Club Noir, “companhia dedicada à montagem de dramaturgia contemporânea, em espetáculos que dialoguem provocativamente com a atualidade”. Mais do que simplesmente ir ao teatro e fruir uma obra rara, vale aceitar a provocação. A julgar por Anátema, a estratégia da nova companhia é forçar o deslocamento dos sentidos do homem contemporâneo: da superfície das relações, consumistas, intermediadas no nível das mercadorias, para o porão quase sempre obscuro e temerário da busca de.
Há um duplo efeito na busca de (assim mesmo, sem complemento). O primeiro é a assunção plena da falta, da ausência, que o consumo só hipocritamente poderia suprir, e o segundo é a imediata projeção do humano para fora da esfera das mercadorias. Explico-me: se busco incessantemente porque (e o que) não há, acabo por reconhecer esta ausência como parte da minha identidade e sei que ela nunca será preenchida seja por um carro novo, um prêmio de um milhão, ou um crime, desses que os noticiários ou Hollywood vendem barato.
Sim, para aceitar a provocação de Anátema, há que se admitir que o homem contemporâneo anda comprando barato o crime e a violência, como se fossem bens de consumo fácil e descartável, mais do mesmo. É sempre mais do mesmo o que garante os grandes índices de vendagem. Há que se ter o crime nosso de cada dia para que tudo se venda, do livro (de auto-ajuda, quase sempre, mas também de sociologia ou de reportagem sobre o crime, a favela, etc etc) ao ansiolítico.
Se é assim, por que Anátema, a história de uma serial-killer, leva à crítica, ao deslocamento dos sentidos, e não ao consumo? Ora, a peça escrita e dirigida por Roberto Alvim não é uma história de serial-killer, mas é a história de uma serial-killer. Naquelas, a série é imprescindível, nesta não há série. Naquelas a profusão de assassinatos urde o jogo maniqueísta em que a astúcia e a habilidade do criminoso são proporcionais à cegueira e inépcia dos agentes da lei. Nesta não há a narrativa da série, mas a reflexão densa a partir da experiência do assassinato como um gesto de amor, de piedade, de entrega e libertação no encontro/confronto com o outro, como a recusa final ao mais do mesmo. Naquelas se garantem as duas horas e pouco de um longa-metragem, ou da dose cotidiana de medo para os que vivem nas grandes cidades. Nesta não há a longa extensão, pelo contrário, o corte é rápido e preciso, para que o expectador saia com mais perguntas, do que com respostas, como quem ouve o eco de uma língua ininteligível. Naquelas, jogos mortais; nesta, um jogo vital.
“Seriam os serial-killers os heróis da cultura do nosso tempo?” Esta é outra pergunta provocadora feita pela companhia Club Noir. Respondê-la demandaria reflexão mais longa. Concluímos apenas com uma hipótese: se os serial-killers forem heróis, em Anátema flagra-se em ação um anti-herói, aquele que não corresponde aos anseios e expectativas de uma comunidade, mas que dilacera e expõe a fragilidade dos valores que a sustentam.