Caio, Taiguara

para Ecio Salles


Ultimamente, não sei por que coincidência dessas que costumam deixar frente a frente os desejos mais contraditórios e verdadeiros, como estar alegre e solitário, apostar na justiça e viver no Brasil, condições assim opostas, ou melhor, desconhecidas, pois tenho para mim que a solidão não conhece a alegria e que o Brasil, em toda nossa história, sequer cruzou, calçadas opostas, com o que sonhamos ser justiça. Pois bem, ultimamente – dizia – dei para reler Caio Fernando Abreu e passei a ouvir, com mais freqüência, Taiguara.

Não sei se Caio ouvia “Teu sonho não acabou” ou se Taiguara lera Morangos mofados. Embora sejam da mesma geração (e se procurarmos bem os pontos de contato entre ambos hão de se iluminar), enquanto um se destacou como o cantor incansável da esperança e da revolução, o outro parecia (mas só parecia) às vezes acreditar demais no dream is over dos anos 70. Gosto agora de imaginá-los se encontrando pessoalmente numa espécie de lugar comum daquela década – o exílio. Mas não vou me ocupar em conferir datas e biografias. Se um encontro dos dois em Londres é apenas possível ou imaginado, o de agora, nas minhas leituras e audições, não o é. Pelo contrário, esses dois estranhos em mim, pois desde a década de 80 habitavam compartimentos distintos dos meus filtros para o mundo, ou seja, organizavam formas diferentes de eu perceber a vida, nos últimos meses andaram se encontrando e se freqüentaram até. O que eu não daria para ler um conto de Caio Fernando que, com um daqueles subtítulos típicos, indicasse: “ao som de Taiguara” ou, então, que bom não seria ouvir um samba de Taiguara, como aquele feito para Santa Teresa, dessa vez cantando um distante e frio Menino Deus.

Porém, o I Ching de Caio ou o sonho de Taiguara não recomendam acreditar em coincidências. Eles reaparecem em mim e fico cutucando memórias, cavando motivos. cutuco, cavo e penso que o cantor me retornou desde quando, há uns meses, recebi um e-mail, sedento de justiça, com a campanha de repatriação de Imyra, Tayra, Ipy, Taiguara, disco censurado no Brasil em 1976, e até hoje disponível apenas em catálogos estrangeiros. Já o escritor veio à tona por motivos mais acadêmicos. Os livros de Caio estavam meio de lado em minha estante já há alguns anos, mas resolvi buscá-los quando constatei que numa turma de especialização em Literatura Brasileira, somente um ou dois alunos o leram; é injusto, pensei, e voltei às Pedras de Calcutá, à Dulce Veiga, aos Dragões...

No entanto, se estes eventos me explicam a coincidência, eu mesmo não a compreendo. Cutuco e cavo mais memórias e motivos. E descubro que esta compreensão íntima que busco só se pode revelar em duas circunstâncias. A primeira vem da memória. Na avidez adolescente das descobertas literárias e musicais, em dois dias perdidos de um ano perdido daquela década dita perdida, foi o mesmo amigo que me apresentou, primeiro, a Caio e, depois, a Taiguara. Este amigo é de um tipo raro, daqueles que ficam para sempre conosco, mas que só abraçamos, em ocasiões igualmente raras, providas ou pelo acaso, ou pela solidão de quando, na hora de assinalar uma dedicatória (como a desta crônica), somos levados a jamais esquecer a origem dos nossos sonhos.

A segunda circunstância é que em outros dois dias quase esquecidos de um quase esquecido fevereiro de 1996, o Brasil passava e ler Caio e a ouvir Taiguara de maneira diferente. Lá se vão dez anos que os dois, em silêncio, não nos deixaram escolha: só reler e “reouvir”. Não nos deixaram mais nada, desde então, mas são imprescindíveis, diria, até, urgentes. É preciso ouvir Caio, ler Taiguara. São ações indispensáveis para reatar mais um elo entre o que fomos, somos, e podemos vir a ser. Seja por uma pequena alegria solitária ou por um ainda quase insano desejo de justiça no Brasil.

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