Entrevista para Daniela Aragão



Daniela Aragão: Como se deu a sua primeira relação com a palavra?
Alexandre Faria: Você me pergunta a respeito da palavra, mas eu voltei a estudar música, na verdade estudei música durante muito tempo por minha conta na adolescência. Sempre fui mais visual, fui aprendendo a tocar pelas revistinhas que comprava nas bancas. Comecei a estudar agora com quem sabe e na perspectiva de que devo aprender a ouvir. Claro que durante a minha formação dediquei um tempo enorme à palavra, mas já havia uma percepção, uma abertura de canal para que eu compreendesse os mecanismos da palavra no lugar que não era só o da gramática. Com a música não tive isso. Aprendi a gramática da música, partitura, nomenclatura, matemática, mas não aprendi a música. Isso não se deu em relação à palavra, eu aprendi a gramática da palavra depois, mas eu já tinha uma identidade com aquilo. No entanto, por mais que eu lesse livros em prosa desde muito cedo, a poesia, a palavra poética veio primeiramente através da canção. Há um episódio que não me esqueço nunca, eu era adolescente, por volta dos quatorze, quinze anos peguei um livro chamado "Literatura comentada", uma coleção que vendia nas bancas, o volume era sobre Chico Buarque. Eu ainda não conhecia o Chico até me deparar com esse livro, fui folheando e quando li a letra de "Cálice" tive um impacto. A leitura da letra me acionou na memória um fato da infância que aconteceu justamente quando eu ouvia aquela canção, é uma coisa de gravar a melodia pela palavra. Tenho uma dificuldade enorme para gravar a melodia sem letra. A letra escrita é que me trouxe a memória do som.
Daniela Aragão: O seu processo de apreensão sonora é muito interessante, pois você busca primeiro a palavra em sua forma visual, escrita.
Alexandre Faria: A minha escrita sempre foi muito visceral e controlada, sou um cara controlado, contido, tímido até. Há todo um sistema racional que interage com essa tensão que a palavra mobiliza. Uma das melhores imagens que já vi em relação ao que escrevo é de uma amiga psicóloga, Lucília, ela um dia disse: "Alexandre, sua escrita é um voo amarrado". É por aí, tem voo, tem delírio, mas é igual a uma pipa. Tem uma linha que segura e que sustenta. Os textos mais aparentemente caóticos que sugerem uma escrita automática são textos em que criei um princípio racional por trás deles e cumpri.
Daniela Aragão: Você como a maioria dos poetas contemporâneos está na universidade.
Alexandre Faria: Exatamente. Acho que a formação em letras a partir dos anos oitenta e noventa começou a ser o destino predileto para quem tinha a vocação para a literatura. Em outras épocas a busca pelo jornalismo, pela comunicação, até quando não se exigia a profissão regulamentada, era muito frequente, então era habitual vermos escritores e poetas no jornal. Depois que o jornalismo se institui como profissão e que a formação superior passa a ser uma necessidade, Letras começou a ser o destino predileto dos poetas. Isso é mal, é ruim para os poetas.
Daniela Aragão: Ruim no sentido cerceador?
Alexandre Faria: Ruim no sentido de que o curso não inclui em seu projeto pedagógico a prática, a produção, a criação. O sujeito aprende a ser crítico e é muito ruim um poeta que seja muito crítico de si mesmo. Crítico com base na teoria e nos elementos que fazem parte da formação em letras e que cria uma espécie de sistema autocensor muito rigoroso e ao mesmo tempo esteriliza a poesia. Considero uma poesia de uma determinada época muito estéril, os críticos mesmo falam isso. Uma geração acadêmica, em alguma medida neo parnasiana até. Uma poesia muito longe da rua, muito voltada para as referências livrescas, auto referenciada. Isso acaba afastando mais ainda a poesia do leitor, pois o leitor não está nos livros e sim na rua. Isso foi uma marca de uma determinada poesia e que acho que é uma tendência que tende a ser rompida ultimamente. Os movimentos que vemos nas periferias, nos saraus, é um processo inclusivo de outras dicções poéticas. Outras vozes que não essa acadêmica. Talvez os poetas bem significativos não tenham saído desse lugar acadêmico.
Daniela Aragão: Se você retroceder ao universo da poesia marginal verá que alguns passaram pela Puc, como Geraldo Carneiro e Ana Cristina César.
Alexandre Faria: Pois é. No Rio alguns anos mais tarde passavam pelo crivo da "7Letras", que foi durante muito tempo um pouco o filtro de tudo o que se publicou e consequentemente do que não se publicou. Naquela esfera de Puc, Gávea, Zona Sul Carioca.
Daniela Aragão: A sua entrada na Universidade Federal como professor de literatura comprometeu a sua essência enquanto poeta?
Alexandre Faria: A minha essência enquanto poeta já estava comprometida desde a faculdade de letras. Eu já dava aula em faculdades particulares no Rio, fui professor da Uerj também. Já estava comprometido ideologicamente com esse lugar. A entrada para a federal me deu em certa medida uma liberdade para conciliar o fazer literário com o fazer crítico e pedagógico. Acho que tento encaminhar meu trabalho em sala de aula, minha pesquisa acadêmica e minha produção poética para o mesmo lugar. É claro que são textos completamente diferentes, mas acho que essas vertentes tendem a culminar numa única obra. Tanto que depois que entrei para a universidade foi que publiquei meu primeiro livro de ficção, eu tinha o "Anacrônicas" escrito desde 1999. Publiquei em 2005 após cinco anos na gaveta. É um romance experimental, na verdade desde que fechei esse livro e o momento em que o publiquei mudei muito pouca coisa. Já era um livro pronto. Mudei sobretudo um jogo de referencialidade que existia e que era um jogo pessoal, amigas com quem compartilhava uma oficina, Claudia Chigres e Giovanna Dealtry, a Claudia já está com um livro pronto pra sair pela "TextoTerritório", e que não faria muito sentido citar seus nomes na estrutura do livro. Coloquei no lugar dessas pessoas o Jorge da "7letras", que era o editor, e o Oswaldo Martins que assinou a orelha. Fechei a circularidade das referências dentro do próprio livro. Na segunda edição que saiu pela "Texto Território" de novo não pude manter esse jogo. Coloquei o nome das amigas na dedicatória e o personagem, que é o editor, assumiu seu lugar no prólogo.Essa é uma edição pensada que recupera tudo o que foi pensado na concepção do livro, edição do autor. Até a tipografia pensei originalmente em 99, os tipos existentes são citados no texto, tudo amarrado ali.
Daniela Aragão: Ainda há outra modalidade que é a internet que abre espaço também para a divulgação de seu trabalho e de outros escritores.
Alexandre Faria: Hoje o site TextoTerritório está em reforma, virou parcialmente editora e na verdade como sou só eu e o Oswaldo, fazemos tudo na medida do possível. O site ficou meio parado, fomos fazendo os livros da editora. Acho que surgiu uma ideia ali, o site foi criado em 2005, então já vai para dez anos. Queremos fazer uma festa de comemoração. Ele surge com o slogan que permanece até hoje, lugar para a criação de textos e textos para a criação de lugares. A ideia é fazer do texto uma espécie de compartilhamento possível da vida, pois até a minha relação com a literatura e com os textos e com a poesia sempre foi uma relação que demandou mais investimento do que a própria relação com as pessoas. Eu sempre fui alguém de poucas relações, embora eu não tenha nenhum problema de me relacionar. Sou tolerante, comunicativo, ouço, mas durante muito tempo preferi os textos. Eles me apresentavam mais novidades e desafios que as pessoas, esse processo de gostar de gente. Tenho um poema dedicado ao Capilé por conta disso, é impressionante a capacidade que ele tem de amar. As pessoas racionais querem um mundo sob controle e o texto é um mundo sob controle, a literatura é um mundo sob controle. Na verdade você escreve porque existe um mundo em descontrole, você escreve para criar noções de controle. Elas são íntimas, quando o livro vem a público o leitor se dana de certa maneira, pois é um descontrole total. É quase que uma obsessão, uma paranoia que leva a escrever para arrumar o mundo, mas que produz uma representação que reproduz um texto que fala de um mundo em movimento, um mundo desarrumado. Demorei muito para sacar que o texto não era o mundo.
Daniela Aragão: O texto continua sendo ainda mais interessante que o mundo para você?
Alexandre Faria: Não absolutamente. O texto continua sendo um lugar de referência, um lugar possível de troca. Acho que as trocas intertextuais acabam sofrendo interferências, ruídos dos processos de mediação todos que experimentamos aí. Por mais que hoje tenha sarau, eu fale em poesia oral, essas coisas todas, o texto lido, no livro ou na tela, obriga o leitor a uma solidão. Um lugar da recepção que acho que coloca cada um de nós num lugar muito especial, nos põe em contato com coisas que são experiências indizíveis, intransferíveis. Compreendo em vários níveis, mas não sou capaz de fazer o outro me compreender em sua plenitude. Isso é do humano, ninguém consegue compreender o outro. O texto é um lugar rico para estes acontecimentos.
Daniela Aragão: Quais são os autores que mais te perturbaram, que são permanentemente lidos e relidos?
Alexandre Faria: É difícil dizer. Que me perturbaram muito, Machado de Assis, foi um choque muito grande ler "Memórias póstumas de Brás Cubas" aos doze anos. Kafka me transformou, "O processo" mais que "A metamorfose" me deixou transtornado. Rimbaud como poeta me assustou muito. Falo muito isso de um lugar que é de leitor, não sei se isso é uma resposta que atenda à ideia de influência. Comecei a escrever desde novo e tudo o que eu lia comparecia, Drummond, João Cabral. Hoje os textos que escrevo tem de tudo. O "Anacrônicas" apresenta textos que fiz de um lugar mais maduro, embora eu perceba muita ingenuidade na escrita, é uma ingenuidade que faz bem. Escrevi aos vinte e nove anos, estava um pouco mais seguro, o que acho que se dá na maneira como eu operava o meu texto em relação ao outros textos. Isso foi um aprendizado longo, a relação entre ler e escrever continuamente, lerescrever é uma palavra que tem dentro do romance. Aprendi um pouco a jogar com isso, então há desde referências literárias, acadêmicas, até coisas que copio de livros, jornais e coloco lá.
Daniela Aragão: Seu último livro é "Venta não", me parece uma espécie de retomada da "poesia relâmpago", de versos curtos que permearam também a poesia marginal.
Alexandre Faria: São formas sintéticas de dizer, poemas que buscam uma concisão. Considero o movimento inteiro um poema. Tenho os números, os flashes, são dois movimentos. O primeiro de oitenta e um que se chama "Tudo muito sempre", como dizer tudo muito sempre sem encher um catatau de páginas? Acho que tento dizer tudo muito sempre com o mínimo, daí essa busca pelo silêncio, eu falo do silêncio, elogio o silêncio. A segunda parte "O pai era um", é uma revisão biográfica. Uma revisão de mim no meu tempo, começa em 1970 até o "Venta não".
Daniela Aragão: Você costuma desenvolver projetos paralelos, como o evento que discutiu a poesia dos anos setenta. Agora você está com uma nova proposta, trazendo os poetas a cidade para falar sobre suas próprias produções, a exemplo do letrista e poeta Rogério Batalha.
Alexandre Faria: Fizemos um evento na Livraria Liberdade em que Rogério Batalha ao invés de simplesmente lançar o livro, fez um bate papo. Isso é um piloto de uma ideia que seria a discussão do fazer poesia. Juiz de Fora é uma cidade que tem muitos poetas, um movimento como o Eco traz uma força significativa. Há muitos jovens poetas que precisam encarar a discussão sobre a própria prática. Acho que tem um espaço considerável para a exibição no Eco, como em outros encontros que acontecem por aí. Há também um impulso na produção editorial, a Funalfa investe em várias frentes, mas a produção de poesia está bem representada. Sinto falta de que os poetas também se engajem no lugar da reflexão sobre a própria produção, mas sem a postura acadêmica, entende?É importante que nesse espaço o poeta fale de seu processo de criação e de sua política de escrita. Ninguém pode escrever ingenuamente, uma oficina da política da escrita, seria a proposta dos encontros. Em breve traremos outros poetas.
Daniela Aragão: É interessante o escritor sair desse lugar de ocultamento.
Alexandre Faria: É uma forma de o escritor se forçar a ocupar a esfera pública. A literatura não pode ser um canal de subjetividades, ou de impressões pessoais de um sujeito diante de seu mundo. A literatura é um sujeito diante de um mundo que não é o seu. A literatura deve trazer à tona essa vontade de confrontar mundos. Pois caso contrário, fica tudo muito bom, tudo muito do bem. Tudo muito pacífico.

Daniela Aragão: Quantas dissertações e teses ficam engavetadas e restritas à leitura de alguns universitários devido à linguagem hermética que predomina em grande parte.
Alexandre Faria: A tese padece do hermetismo como você falou. Às vezes a pessoa se interessa muito por poesia, mas não consegue ler uma tese feita na academia sobre poesia. A academia tem a responsabilidade de prestar um serviço público também através desse conhecimento e ele não pode ser esotérico. Se a física quântica é esotérica vá lá, há uma formação do menino no ensino médio para que ele seja capaz de compreender os cálculos que levam as conclusões da física. Em relação aos estudos humanos, de quem estamos falando afinal de contas? E para o conhecimento de quem estamos falando? Isso ser feito com a poesia é sabotagem. Tem professor de literatura que entra na sala e fala para o aluno do Ensino Médio que poesia é uma coisa muito difícil, que é para mentes iniciadas e tal. Então já apresenta a poesia como algo inatingível, isso é sabotagem do saber, sabotagem do bem público. Quem está dando respostas a essa sabotagem que a academia faz é a periferia. São os saraus das quebradas. Isso está surgindo com força hoje, trata-se da apropriação da literatura no lugar em que ela circula. Não na mão dos iniciados.
Daniela Aragão: Você vive no fluxo Rio/ Juiz de Fora. Como se dá a sua atuação no Rio?
Alexandre Faria: No Rio faço parte de um grupo que promove saraus que acontecem uma vez por mês em Manguinhos. Atuo em Manguinhos, que é um complexo de favelas no Rio, desde 2000, quando fundamos um curso pré-vestibular comunitário. Eu dava aula de literatura no projeto comunitário, uma das estratégias pedagógicas lá foi a promoção de uma sarau. Isso se deu na época do centenário de Drummond. Foi um movimento natural que aconteceu um tempo ligado ao Pré-vestibular comunitário e que depois ganhou vida própria em função das pessoas que continuaram envolvidas nele. Em 2013 foi feita uma antologia de dez poetas que participam dos saraus de Manguinhos, não se restringe aos poetas de Manguinhos, amplia-se para os poetas da cidade inteira.
Daniela Aragão: Quais são seus projetos atuais?
Alexandre Faria: Tenho muitos projetos, e nunca sei qual deles vou realizar primeiro. Projeto pra mim é algo que acontece longe de qualquer finalização. Por exemplo, venho desde quando estava escrevendo o "Venta não", pesquisando algumas coisas sobre representações do amor durante os anos 70 no Brasil, o amor e a ditadura. Da mesma forma que o Anacrônicas, penso em mais duas narrativas que fariam uma trilogia. Isso é projeto antigo. Uma está quase toda desenhada, mas pouca coisa escrita. A outra só esboçada. Tinha esses projetos, mas de repente outro livro, que era meio subproduto do "Venta não" ficou mais urgente. Voltei a ele e já fiz uma versão. Devo modificá-la, mas já tenho o ponto de partida inteiro, todos os poemas. Deve sair ainda esse ano, ainda não tem título. Os projetos literários andam devagar porque tem os acadêmicos, projetos de pesquisa, aula, palestras, orientações. A vida de um poeta formado em Letras é muito cheia de projetos.

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