Tropa de elite

Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.
(Carlos Drummond de Andrade)

Finalmente assisti ao filme. Mas não me animo a entrar no debate, que logo fica velho e esquecido. Acompanho a discussão sobre violência policial, favela e narcotráfico, especialmente no Rio, desde os anos 80. Avançou. Mas, lamentavelmente, o avanço dos debates foi proporcional ao aumento da truculência da polícia, da hostilidade do bandido, da fragilidade dos governos e... dos lucros com o tráfico.

Sobre o filme há posições lúcidas e rigorosas, outras oportunistas (Idelber Avelar, blogueiro exemplar, listou várias). Talvez eu só esteja também aproveitando a oportunidade para publicar estas notinhas pouco rigorosas, mas sem abrir mão da lucidez:

1 - Terminei de assistir ao filme de José Padilha e, antes de ir para casa, resolvi passar na locadora e alugar Amen, de Costa-Gavras. Nada melhor para entender porque o Bope invade a favela em nome da Santíssima segurança.

2 - Depois resolvi folhear um livrinho muito útil. Para quem ainda não leu, recomendo: O narcotráfico, de Mário Magalhães, da coleção Folha Explica. Recorto trechos e acrescento uma pergunta a cada:

  • "No Brasil, comprovadamente, o narcotráfico lava dinheiro assim: nas Bolsas (o investidor não aparece, opera por intermédio de corretoras); com empresas de diversas naturezas (construtoras, táxi aéreo, comércio); casas noturnas, boates, restaurantes (especialidades das máfias italianas); companhias seguradoras; casas de câmbio; negócios com jóas, metais preciosos, objetos de arte."
Então, dá para concordar com uma idéia freqüente no filme, e achar que um "vapor" morre por causa do dinheirinho do "viciado"?
  • "É o UNDCP [Programa das nações Unidas para para o Controle internacional de Drogas], e não um grupo anticapitalista, que afirma: 'As organizações criminosas envolvidas com drogas ilícitas responde às oportunidades criadas pela globalização da economia de mercado'[...] Na prática isso significa o seguinte: ao mesmo tempo que gastam saliva para condenar e fortunas para enfrentar as ações e as conseqüências do narcotráfico, as grandes potências mundiais organizam, consolidam e aprofundam o sistema que permite à cadeia produtiva do crime organizado não só operar com desenvoltura como também se ampliar incessantemente."
Será que alguém que começou a vida do crime há uns 20 anos, como "olheiro", estará hoje diante de um teclado de computador só administrando os seus investimentos via internet?

  • "Os Estados Unidos têm incentivado a militarização do combate ao narcotráfico..." "Os governos nacionais são avaliados como tendo ou não atuação contrária ao narcotráfico. Os reprovados perdem direito a todo tipo de colaboração com os EUA, que retaliam com proibição de importações e exportações, empréstimos de organismos financeiros internacionais e penas complementares."
O ano em que meus pais saíram de férias é ótimo, mas será que escolhemos o filme certo para concorrer à indicação do Oscar?

3 - Já fui bancário muitos anos; nunca ninguém me chamou de banqueiro. Se eu fosse comerciário, quem ia me confundir com um comerciante? Preciso urgente de um especialista em língua portuguesa, para saber porque o sufixo -ANTE, passou a funcionar para traficários, uns pobres rastaqüeras, sem muita oportunidade na vida, mão-de-obra barata para investidores da bolsa, donos de empresas, donos casas de diversão, enfim, toda essa gente rica e transnacional que costuma circular habilmente entre nossos políticos?

4 - Toda a discussão partida do filme, então, sofre um desvio grave de foco. Não há problemas com o tráfico de drogas, pelo contrario, ele vai muito bem e ajuda a incrementar parte considerável da economia mundial. O problema é a existência de pobres. Pobres favelados vendedores de pó. Pobres agricultores plantadores de coca. Pobres desassistidos, que podem ser esculachados por outros pobres, milicos psicopatas ou cínicos.
Até os que roubam, muito pobres. Mas todos inocentes. Nas nas favelas e no senado, todos inocentes. Ainda ouvimos o eco da voz de nosso primeiro cronista: "Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior". E com tamanha inocência, acabamos por prescindir da justiça. Este é o problema do oculto óbvio, como aponta o meu companheiro de ofício, correspondente de Macondo, Parangolé.

5 - Prezado capitão Pimentel, em respeito à sua coragem de trazer à tona a discussão e romper com o VÍCIO do "manda quem pode e obedece quem tem juizo", ou do "quando um burro fala o outro abaixa as orelhas", das instituições brasileiras, gostaria de contradizer-lhe. Não é uma guerra particular. É uma guerra de todos. Particular é a guerra em que um império capitalista se lança às cegas contra terroristas que lhe explodiram um símbolo, que lhe expuseram a fraqueza. A guerra contra a miséria e a injustiça, prezado capitão Pimentel, não pode ser particular. E nela devemos discernir quais armas usamos. E contra quem. O cinema é uma arma forte e, às vezes, devastadora ( Hollywood que o diga!).

6 - Se bem acerto nas lições de teoria da literatura, herói se define pela identidade entre um personagem e o conjunto de valores e ideais de uma sociedade. Mas se o herói de Luciano Huck não é o mesmo herói de Ferréz, isso é sintoma de que a sociedade está partida, talvez estilhaçada. É evidente que os roteiristas, o diretor, ou o ator Wagner Moura, não construíram um herói. As críticas ao filme estão sendo apressadas, ou comprometidas, ou confundem ficção e documentário. O melhor que se pode fazer contra elas é divulgar o Ônibus 174. Desejar que esse filme seja visto pela mesma quantidade de pessoas que já viu Tropa de elite.

7 - Se o público se identificou tanto com o filme -- e isso precipitou que os camelôs vendessem por aí Tropa de Elite II e III (ao que me consta o segundo foi o título dado pelos piratas a Notícias de uma guerra particular e o terceiro, um documentário amador, que acompanha a rotina de policiais em suas investidas contra os traficários da favela -- se o público está se identificando tanto com tais filmes, eu dizia, se hoje as mães se reconhecem no medo da polícia e do bandido, é porque talvez não seja mais possível cantar uma canção, que, perto do começo dessa história toda, nos anos 80, ilustrava as notas de 50, primeiramente raras, depois surradas e hoje esquecidas.
Tropa de elite, Ônibus 174, Carandiru, Notícias de uma guerra particular, Cidade de Deus (entre outros filmes, livros e discos) são canções inimigas. Necessárias, mas inimigas: podem fazer acordar os homens, mas não deixam adormecer as crianças.

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